quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Análise do twist final de "A Ética", curta-metragem escrito por Pablo Villaça.

CURTA-METRAGEM: A ÉTICA
*veja o filme antes de ler o texto, já que analisarei a surpresa final do curta.

"Eu acredito na ética, a ética tem feito minha fortuna".

É a primeira fala do sequestrador. Surge nos segundos iniciais. O escritor Pablo Villaça não perde tempo. Manipula a expectativa do espectador desde o início. Nós realmente acreditamos que o matador é uma pessoa ética do início até o fim do curta devido a força da fala. A atuação fria do ator e a direção também ajudam.

Tudo nos leva crer que o matador realmente está falando a verdade sobre si.

O curta de Pablo Villaça demonstra mais uma forma de manipular a expectativa do espectador. Basta colocar um personagem que realmente pareça ser alguém que ele não é. Ele pode mentir descaradamente. "I'll wait for the next one" e "Dirty", ambos que podem ser encontrados no YouTube, fazem a mesma coisa.

Como já escrevi em outros posts, curta-metragens são escritos do final para o começo, na maioria das vezes. Um bom final é extremamente importante em curtas. Por isso, roteiristas tendem a surpreender o espectador no final.

Este twist final é o momento mais importante do curta. Todos os diálogos e cenas são escritas tendo em mente o final. Quanto a "A ética", se Pablo Villaça não tivesse escrito esta linha de diálogo, o final do curta não seria impactante. Precisamos acreditar na ética do matador para nos surpreendermos com o twist final.

O tipo de manipulação usada neste filme provavelmente não funcionaria em outros. No curta-metragem "A Fábrica", o detento nunca fala para alguém ele é bom ou ruim. Cada filme vai pedir uma forma diferente de manipulação. Devo lembrar que a palavra "manipulação" não quer dizer enganar. Apenas esconder, ludibriar. Como um mágico.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O segredo por trás do curtas vitoriosos (parte 2)

Esta estrutura aliás é observada em diversos longa-metragens. Observem estes quatro filmes completamente distintos: "Se7en", "Pequena Miss Sunshine", "O Som ao Redor" e o curta "Em Trânsito".

Sem o final de "O Som ao Redor", o que seria o filme? Um filme mediano.

O que seria "Pequena Miss Sunshine" sem a dança erótica da garotinha? Um filme mediano, e até medíocre.

E "Se7en" sem o forte final? Um mediano filme de suspense.

E o filme-arte "Em Trânsito" sem aquele final grandioso e musical? Apenas uma boa história.

Quanto ao "O Som ao Redor", a estrutura é parecida com a do filme "A Fábrica". Antecipamos que os seguranças de "O Som ao Redor" são pessoas boas e pacíficas, mas estão ali para matar.

A mesma coisa ocorre em Pequena Miss Sunshine. Antecipamos que a apresentação da garotinha de Pequena Miss Sunshine vai ser algo comum, porém acaba sendo sexual.

Bem, quais seriam as melhores formas de se criar estes dois pontos tão importantes da história e o que um bom começo e meio devem fazer para intensificar estes dois momentos?

SOBRE O INCIDENTE INCITANTE

O INCIDENTE INCITANTE - o evento/acontecimento que muda o protogonista e faz ele reagir/agir e ir atrás de um objetivo pode ser um forte dilema ou algo completamente drástico e surpreendente. Também pode ser uma ironia (o incidente incitante de To have and to hold). Muitas vezes, é algo difícil que requer uma ação urgente.

Vejam como o incidente incitante de um curta premiado é sempre um forte dilema ou um acontecimento drástico, ou ambos:

I'll wait for the next one - mulher tem que escolher entre descer ou não na próxima parada para conhecer um rapaz apaixonado. (Dilema e evento drástico).

The Lunch Date - mulher rica tem seu almoço roubado por um mendigo. (Dilema e evento drástico).

Cargo - um pai descobre que vai se tornar zumbi dentro de três horas e precisa de qualquer jeito levar seu filho ainda bebê para um lugar seguro. (Evento drástico).

To Have and to Hold - após um acidente automobilístico, mulher tem que cortar o braço apaixonado do marido para fugir das engrenagens do carro. (Dilema e evento drástico).

Helium (ganhador do Oscar) - enfermeiro precisa contar uma história infantil antes de um paciente morrer. (Evento drástico e o dilema vem depois e é devotado a uma enfermeira e não ao protagonista).

A Ética (dirigido e roteirizado por Pablo Villaça) - homem tem que escapar de um matador de aluguel negociando sua próprio vida.

URGÊNCIA - todos estes três bons curtas têm um incidente incitante impactante e que requer uma resposta urgente.
The Lunch Date - o mendigo come mais e mais a salada e a protagonista (a idosa) tem que fazer algo rapidamente em resposta a isto antes da salada terminar.

I'll wait for the next one - a mulher tem 3 minutos para descer do metrô e precisa se decidir.

Cargo - ele tem que correr e levar o bebê em três horas.

Roteiristas americanos chamam essa urgência de "ticking time bomb". Em muitos filmes não é tão perceptível a urgência, mas ela existe. Viagens de última hora de pares românticos, por exemplo.

SOBRE O TWIST FINAL + CLÍMAX

TWIST FINAL (SURPRESA/REVERSAL) - Na maioria das vezes, um twist final é na verdade o contraste entre a expectativa boa/má e o resultado bom/mal. Esperamos que o prisioneiro em A Fábrica seja alguém ruim, porém ele é alguém bom.

Além disso, twists finais costumam ser direcionados apenas para a platéia. Os outros personagens não sabem do segredo. Em "A Fábrica", a menina não sabe do segredo. O protagonista já sabe. Apenas para nós realmente é revelado.

Em contrapartida, "I'll wait for the next one" tem um segredo revelado que não apenas nós descobrimos como também a protagonista.

Observem que nossa expectativa é que o personagem é alguém bom, porém no final descobrimos que ele é alguém que mentiu ou escondeu a verdade.

Nem sempre twist final é realizado desta maneira. Nem sempre é necessário um segredo ser revelado no final do curta.

O curta Cargo tem como surpresa a estratégia do pai em salvar seu filho e um tiro de rifle inesperado e impactante.

The Lunch Date tem duas surpresas. Descobrimos que o mendigo não é alguém ruim, como esperássemos que fosse, e descobrimos que a protagonista não teve sua salada roubada (alívio bom). Além disto, ironicamente, foi ela que acabou tentando roubar a salada do mendigo.

O filme Helium contém uma surpresa final que é apenas uma decisão surpreendente: a da enfermeira em colocar o protagonista em contato com o garoto novamente. É uma ação inesperada e surpreendente pois parece que ela realmente parece que vai contar a história para o menino, porém, muda de ideia e chama o enfermeiro (protagonista). 

O twist final, portanto, não precisa necessariamente ser algo tão drástico. Pode ser algo surpreendente na ação do protagonista na hora de sair da enrascada (como em Cargo). Pode ser um evento surpresa e inesperado (o tiro de rifle em Cargo). 

Pode ser uma revelação a respeito de um personagem que o roteirista não mostrou  no decorrer do filme (Life Lessons, de Martin Scorcese). 


O twist final também pode ser irônico. The Lunch Date tem um final irônico (ela pensou que tinha sido roubada, mas acabou roubando). Em 
Lights Out, um curta de 2 minutos de horror, o fantasma acaba agindo de forma igual a protagonista. A ação da protagonista volta contra ela. O antagonista (monstro) deliga a luz. 
Muitos curtas e longas buscam a ironia. Em Cassino Royale, um terrorista acaba explodindo a se próprio. Em Kick Ass 2, o vilão morre devorado por seu próprio tubarão. Essas ironias também são chamadas de justiça poética. 


Muitas vezes, algum personagem está mentindo no curta ou escondendo algum fato importante (I'll wait for the next one). A revelação pode ser passada apenas para o espectador (como em Life Lessons, de Martin Scorsese). 

Uma dica para diretores: quanto mais dramático a surpresa final, maior o tempo necessário nas reações. Prolongue portanto o fim do curta. Em I'll wait for the next one, por exemplo, passamos um bom tempo vendo a reação da protagonista ao que aconteceu. Temos ainda os créditos do filme para pensarmos a respeito. Tudo aquilo é para sentirmos o peso da revelação bombástica. 

CLÍMAX - O FINAL PODE SER APENAS EFICAZ E FORTE 

Observem que os finais de Cargo e o de To Have and to Hold não são surpreendentes. Apenas eficazes e emocionantes. Tensos e belos. Não precisam de uma grande surpresa final.

Nem sempre precisamos de uma surpresa final bombástica. Apenas de um ou clímax final eficaz.

Às vezes, um dilema no incidente incitante é tão forte (como em To Have and To Hold) que nem precisamos de um final surpreende. O curta funciona tanto que vemos com prazer e atenção como a protagonista vai sair da enrascada. 


UM FORTE INCIDENTE INCITANTE NÃO PRECISA DE UMA SURPRESA FINAL

To Have and to Hold tem um incidente incitante tão impactante que não necessita de uma surpresa final. Robert Mckee diz que na estrutura de um longa, há uma crise e uma ação final climática (o último ato). Ele diz também que pode existir uma crise durante a ação climática. 


Menina de Ouro não possui uma crise durante a ação climática. A crise deste filme é um dilema. O protagonista tem que escolher entre aplicar ou não a eutanásia. Escolher entre a salvação da sua alma ou da consciência de sua aprendiz lutadora. 

O último ato desse filme é o resultado da escolha que ele fez. E t
odo o resto do filme existe apenas para contextualizar a decisão da crise. É por isso que o protagonista tem uma filha que não liga mais para ele. E também é por isso que ele conversa tanto com o padre. Se não existissem essas cenas, o impacto da crise e da ação climática seria diminuído. 

Obs: A ação climática são todas as cenas após o pedido da lutadora.


SOBRE O RESTO (O MEIO, O COMEÇO E A RESOLUÇÃO) 

Claro que isto dependerá da sua história. Diversos filmes contém uma surpresa final surpreendente e o meio apenas serve para nos enganar ou alongar a resposta.

O meio de "I'll wait for the next one", por exemplo, existe apenas para fazer com que nós acreditemos que o rapaz realmente está falando a verdade. 

A FUNÇÃO DO COMEÇO

O que seria de "Em Trânsito" se o protagonista não tivesse a casa destruída no começo do filme? O que seria de "Se7en" se não víssemos Brad Pitt beijando sua mulher? O que seria de "To Have and To Hold" se não soubéssemos o valor sentimental da mão? O que seria da "A Fábrica" se os personagens dissessem tudo o que iriam fazer com o celular?

O começo portanto dá um contexto ao que acontecerá em seguida. Às vezes, esconde fatos importantes para um final surpreendente. Etc.

Curtas, através apenas da imagem, como a bolsa de marca da idosa em The Lunch Date demonstram que ela é rica. Interação entre personagens e objetos também servem para contar sobre o personagem (sabemos que a senhora de The Lunch Date está atrasada pela forma como ela interage com o relógio). Existem outras formas de expor visualmente. O contraste entre a senhora e o mendigo no começo do curta servem para mostrar que ela é rica e fútil.

O começo deste curta também serve para nos despistar do final. Ela é roubada no começo do curta, o que nos faz ficar na expectativa de que ela também roubada pelo segundo mendigo da história. Este começo, portanto, nos despista do twist final.

O começo tem diversas funções e vai depender da história que você quer contar.

O de Election Night (ganhador do Oscar), por exemplo, serve como uma cena eco para o final. Intensificando assim o arco do protagonista que vai de alguém que se interessa por política para alguém apolítico ou desanimado. Ele volta ao bar do começo do curta e vemos o contraste entre o começo (confiante) e o final (desapontado e desinteressado).

Além disso, este curta trabalha com Set-up & Pay-Off (pista e recompensa). No começo, ele rejeita a bebida mexicana, diferente do que ele faz no final.

AS DIFERENTES FUNÇÕES DO MEIO

A "A Fábrica" funciona tão bem por que nós temos uma imagem do prisioneiro clara. Achamos que ele seja mal. Antecipamos que ele cometerá um crime. O meio nos coloca em suspense durante a história e acharmos que a idosa é uma pessoa também má.

I'll Wait for the next one é diferente. O meio serve para nos despistar e certificar que o apaixonado realmente é apaixonado. Ele chega a dizer que não é um ator e que está ali em busca de amor. Enquanto os passageiros discutem com ele, ficamos cada vez mais certo de que ele é um cara apaixonado.

O meio de To Have and To Hold serve apenas para sentirmos toda a dor da protagonista. Estamos perplexos com o acontecimento. Sua função é alongar a resposta ao dilema da mão. 

E quanto ao curta "Em Trânsito"? É um filme de arte. Esta distinção não é tão importante assim, mas necessária. Observem que o filme não se encaixa em nenhum tipo de gênero. Não é uma história de sobrevivência, nem de horror, nem de ação.

As convenções dos filmes de arte é criar emoções diferentes no espectador, vendendo uma mensagem política. O meio serve para nos entregar emoções distintas que camuflam a mensagem política. O meio é cheio de tensão (o protagonista entrando numa concessionária e ficando no meio de uma rodovia) e suspense (uma faca surge na trama).

O final, clímax do filme, é um deleite visual que entrega a mensagem em forma de dança nos surpreendendo com sua beleza e tamanho.

1. AÇÃO E REAÇÃO (IN MEDIA RES) - espectadores hoje em dia não aguentam mais histórias estagnadas e lentas. Por isso é sempre bom ter ação e reação a todo momento num curta (como também em um longa). Observem, por exemplo, Helium. A história nunca para e os personagens vivem interagindo.

In media res (no meio das coisas) é entrar o quanto mais cedo possível na interação entre dois personagens. Observem como filmes tendem a não passar muito tempo filmando um personagem andando e fazendo nada (a não ser que você queira provocar no espectador curiosidade). Na maioria das vezes, as cenas já começam na interação entre dois personagens. Antes da conversa entre os dois, podemos ter uma imagem da casa ou de algum objeto (americanos chamam de "estabilishing shot"), mas logo em seguida, os dois personagens já conversam).


2. OBSTÁCULOS - alguns filmes colocam obstáculos para intensificar o suspense e o drama. E como já disse anteriormente, para nos despistar do final surpresa. Esses obstáculos são importantes após o incidente incitante ou após um dilema para intensificar o suspense e criar no espectador uma sensação de profunda tensão. Assistam Election Night e observem como os conflitos funcionam para aumentar a tensão.

Como qualquer coisa no cinema, cada elemento possui diversas funções. David Bordwell em "Film an Art" exemplifica muito bem isto. Existe uma função por trás do táxi no filme Election Night. Se ele pegasse um ônibus, não existiria história.

O filme "I'll wait for the next one" tem um pequeno conflito entre o apaixonado e alguns homens dentro do metrô. Este conflito tem duas funções. Primeiro, acreditamos ainda mais que o homem realmente está apaixonado, o que serve para nos despistar do twist final surpreendente. Segundo, esse conflito gera suspense e esperamos ansiosamente para saber como vai ser o final do curta.


Existem outras formas de se criar tensão e suspense e o conflito direto não é sempre necessário. Em Cargo, por exemplo, citado mais acima, não existem obstáculos para o protagonista. Ao caminho da salvação, em nenhum momento zumbis aparecem, nem estupradores. O único antagonista fica por conta do cansaço. Em certo momento, ele cai. Noutro momento, percebe que o tempo está acabando e que ele está virando um zumbi. 


Outra forma de criar tensão/suspense e ansiedade é alongar o tempo até o final. Atrasar o final. Existem muitas formas de fazer isso e o livro Writing for Emotional Impact as dispõe. 

Romances, como Antes do Amanhecer (longa de Richard Linklater), não possuem conflito exagerado. Mas a interação entre os dois personagens é cheia de suspense. Quando eles vão se beijar? Como será o beijo? Eles vão fazer sexo? O que ela vai responder ao que ele disse a respeito da religião? O que a cartomante vai dizer sobre eles?

Este post foi direcionado para aqueles que querem escrever um bom curta e que acabam às vezes se perdendo ou alongando demais a história. Busquem filmes e observem estes elementos descritos aqui. E se lembrem sempre da força de um bom dilema.

3. URGÊNCIA INTENSIFICADA DEVIDO AO MEIO

O meio de uma história também serve para tornar a história cada vez mais urgente. O protagonista deve resolver o problema nos últimos segundos por que o meio não deixa o protagonista resolver o problema. Além de um ou outro obstáculo, uma complicação pode existir que acelera tudo. Por exemplo, em Helium, o protagonista não pode mais entrar no quarto do garoto que está cada vez mais com a saúde deteriorada. Election Night é um exemplo claro disso. 

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*OBS: Bons filmes surpreendem quase a todo momento. Ninguém espera que o protagonista de Cargo vire zumbi de repente. Em Election Night, ninguém espera um taxista racista, nem que o protagonista vai retornar ao bar para tomar uma cerveja mexicana.

Trocas de diálogos maravilhosos também podem surpreender. Existem até técnicas de de surpresa para na hora da criação de linhas de diálogos.

Para não só apenas dois grandes momentos mas também diversos bons momentos num curta, sugiro estes três escritores maravilhosos no final do post.

Lembre-se, um curta é feito para intensificar 2 grandes momentos. Apenas dois. E se um curta é muito pequeno (30 segundos ou 1 minuto) basta apenas um grande momento. Mas aí é papo para um próximo post.
*OBS: esqueça a estrutura fechada da "Jornada do Herói". Muitas das etapas não existem em curtas embora os arquétipos possam existir. 

Livros imperdíveis:


Para entender mais sobre dilema - Story, de Robert Mckee.

Sobre como provocar emoções no espectador - Writing for Emotional Impact, de Karl Iglesias.
Sobre decisão, suspense e ação - William C. Martell (the action and Scene Secrets blue books)

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O segredo por trás dos curtas vitoriosos

"A movie, I think, is really only four or five moments between two people; the rest of it exists to give those moments their impact and resonance. The script exists for that. Everything does." - Robert Towne

Robert Towne disse isso sobre o longa-metragem. Quanto ao curta-metragem, ele provavelmente diria que o curta é feito para apenas dois grandes momentos e que o resto serve para dá impacto e ressonância a esses dois momentos.

Roteiristas iniciantes comumente escrevem curta-metragens com excesso de tudo: muitos obstáculos, conflitos, cenários, diálogos e pontos de virada (twists). Essas histórias acabam se tornando confusas.

Desesperados, apelam para a violência. Inserem mortes, transas e murros. Estórias já enfraquecidas ficam cada vez piores e implausíveis.

Esses roteiristas esquecem que  a estrutura de um curta-metragem é diferente da de um longa-metragem. 


A preocupação principal do roteirista de curta deve ser devotada principalmente a dois pontos da história: o incidente incitante e o twist final.

O resto é importante, mas se essas duas partes falham, a história pode cair no esquecimento.

Para começarmos, nada melhor que um exemplo. Vejam o curta-metragem vencedor do Festival Internacional de Sundance. Um filme chamado A Fábrica

Após assisto-lo, retorne para o texto.


O QUE PODEMOS OBSERVAR NESTE CURTA
(SPOILERS)


Estrutura identificada: o filme segue a estrutura conhecida como "The Quest" ou "Jornada do herói". Um protagonista que vai em busca de um objeto de desejo e enfrenta conflitos para conseguir o que quer.

Protagonista: Idosa.

Objeto de desejo (object of desire): entregar o celular para o prisioneiro.

Antagonista: seguranças do presídio;

Conflito: o conflito não é direto. Há o suspense que é a espera por um provável conflito. Há tensão e suspense.


Incidente incitante: prisioneiro está ansioso para que uma idosa entregue um celular para ele na prisão. O incidente incitante está fora da do filme, mas fica claro para o espectador logo de cara quando o prisioneiro pergunta sobre o celular. A idosa recebeu ordens para entregar um celular na prisão (evento drástico/impactante).

Pergunta gerada pelo curta e que a platéia quer ver respondida (o que Robert Mckee chama de "obligatory scene"): a idosa conseguirá ou não entregar o celular para o detento? E qual crime ele cometerá quando pegar o celular?

Por ele ser um prisioneiro em busca de um celular, antecipamos, devido ao nosso preconceito, que ele pegará o celular para cometer um crime.

Portanto, antecipamos algo ruim.

Twist final surpreendente: descobrimos que o prisioneiro queria apenas ligar para sua filha aniversariante e dizer a ela que ele está bem e trabalhando na "fábrica". O resultado, portanto, é algo bom. Nossa antecipação ruim estava errada e por isso o final do curta surpreende.

Observe que há começo, meio e fim claros no curta. Só que o meio dele não é tão significante assim. O que torna este filme diferente de todos os outros é o começo e o final. O meio apenas serve para 
nos deixar em suspense, intensificando assim a força do final além de nos direcionar para longe do twist final surpreendente.

O meio nos faz acreditar ainda mais que o bandido quer o celular para ligar para algum bandido. Algo relacionado ao tráfico. Achamos que ele vai cometer um crime com o celular (antecipação ruim). O final surpreendente e pacífico, sem crime, funciona por causa da exposição inicial (antes do incidente incitante) e do meio. 


Ou seja, como Robert Towne falou, todo o resto - a cena na casa da senhora e na prisão e os seguranças vasculhando as roupas da senhora - serve para os pontos mais importantes e significantes, ou seja, o final.

O twist final se torna significante, impactante e ressonante, devido ao resto (cena inicial, suspense do meio e cena final de resolução) do curta.

domingo, 25 de maio de 2014

Pulp Fiction - The best set-up (Pista e Recompensa)

Muitos consideram que a cena "Royale with cheese" no filme Pulp Fiction serve apenas para provocar risadas e ficar icônica. Porém ela possui diversas funções. Ela é na verdade um set-up (pista) para criar mais antecipação e suspense dentro de uma cena seguinte (pay-off), na qual o personagem de Samuel L. Jackson come um cheeseburger. Esta cena faz parte de uma sequência intitulada "A busca pela maleta".

Cenas como essas localizadas no primeiro ato da história tem diversas funções. Elas podem tanto funcionar para apenas uma sequência, mas o ideal é que elas funcionem também para a história toda.

Qualquer boa cena pode possuir e até deve ter diversas funções na narrativa. Seria incoerente achar que Quentin Tarantino iria colocar linhas de diálogo apenas para parecer cool.

SET-UP SCENE AND PAY-OFF (PISTA E RECOMPENSA)

THE SET-UP SCENE: ele ama cheeseburger;


THE PAY-OFF: Ele vai gostar do sanduíche? Vai matar o cara? 

 


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Mise-en-scène em Saturday Night and Sunday morning (1960), de Karel Reisz.







Saturday Night and Sunday morning (1960), de Karel Reisz. 

Embora as cadeiras do cenário e o figurino do protagonista, cujas listras se assemelham as grades de uma prisão, transmitam a sensação de aprisionamento, sem dúvida alguma, a forte presença presença da mise-en-scène é o que mais evidencia a falta de comunicação naquele ambiente familiar. E comunicação é o principal valor que é virado para o negativo nesta cena.

Arthur Seaton não consegue se comunicar com seus pais devido à modernidade da cidade grande. O diretor poderia muito bem ter colocado as figuras paternas viradas para o protagonista, porém, ao colocar estes personagens de costas, nenhuma empatia ou sentimento de liberdade é observado nesta cena.

De forma recorrente, no filme, todas as figuras paternas dos personagens principais agem da mesma forma: virando as costas para seus filhos.

Análise da mise-en-scéne de um frame de The Killing.











Sarah Linden, personagem da série The Killing, sendo ridicularizada por homens no Departamento de Polícia de Seattle. Sua postura encurvada e o cruzamento de suas pernas indicam mais ainda sua feminilidade naquele ambiente. 


Ela é a figura mais inferiorizada do quadro, a altura dos seus olhos é a menor em cena e a maioria dos personagens estão em pé. A própria estatura da atriz ajuda a transmitir tal sentimento de pequenez.

A iluminação escurece as faces de alguns personagens atrás de Linden, não só para guiar a atenção do espectador para a reação de apenas alguns personagens principais (principalmente a atriz), mas com o intuito de fortalecer ainda mais a impressão de que aqueles policias são seres humanos vis. 

O escuro sempre simbolizou, pelo menos na cultura ocidental, a morte e a uma ideia de mal.

domingo, 8 de setembro de 2013

O Som ao Redor (uma crítica mais pessoal e menos técnica)


Ambientado no Recife, o Som ao Redor trata bastante sobre nós – recifenses – ao escancarar as aflições mais explícitas e os medos mais intrínsecos, e neste aspecto, o filme não é nada sutil, mas isto não é de forma alguma uma crítica. Ele brilha ao transformar nossos medos sociais em pesadelos rotineiros na vida de uma menina da trama; ao colocar o contato patrão e empregado análogo a uma época escravista distante e, claro, utilizando o som estridente que nos enfurece no dia a dia de forma tanto diegética (vinda daquele mundo fílmico, escutado e provocado pelos os personagens) como na trilha sonora, deixando claro que em nenhum momento escaparemos deste desobediente som. Fora estes tantos pontos positivos, é na forma de narrar onde O Som ao Redor realmente brilha.

Ao não se restringir narrativamente à apenas um personagem, a película pode abordar um mosaico de figuras: alguns de maneira profunda, outros, superficialmente - lidando com seus problemas da mesma forma como nós lidaríamos. Quando a narrativa caminha no interior de Pernambuco com duas figuras superficiais que tomam banho de cachoeira e brincam em um cinema antigo, mas restringe um tempo ínfimo para um menino de rua, este é o mesmo interesse narrativo que devotamos ou devotaríamos a esses personagens em um mundo real. 

Muitos caminham horas no shopping e leem notícias vazias a respeito de famosos efêmeros, mas os minutos depositados naqueles que sofrem se reduzem a impostos e a um olhar misericordioso direcionado para fora da janela do carro. Já fiz isto também, mas quando comecei a pensar conscientemente naqueles que sofrem nas ruas, tais figuras se tornaram reais (mais humanas) tanto de dia quanto de noite na minha mente; e as caminhadas em centros de compras ficaram cada vez mais, dolorosas, irritadiças, acinzentadas.

Por ter consciência da exclusão social que um menino de rua sofre, racionalmente, posso aplaudir quando o diretor o transforma em um ser animalesco e fantasmagórico que dorme nos galhos de árvores e, quando corre, vira-se vulto, porque é assim que estes se comportam no nosso inconsciente. Você; não sei. Mas meus pesadelos são constantes e, em inúmeras vezes, se resumiram a assaltos amedrontadores, que de forma similar aos da menina do filme só percebi que eram sonhos algum tempo após acordar.


Camuflado na narrativa existe uma história de vingança – típica do Western - que serve para nos colocar um ponto de interrogação moral. (Pare de ler aqui se você não viu o filme). Ao defender as atitudes criminosas de um de certo personagem que mata brutalmente o “senhor de engenho”, dono de uma grande parte do bairro, estaríamos aceitando nossa própria punição ou a punição destes que nos desperta ojeriza. Não acho que este é o caminho que deveríamos traçar, mas é claro que é uma interrogação pertinente.